domingo, 10 de julho de 2011

Filosofia sem razão


Consumido por uma elegia
Da qual compunha melodia
Com melancolia
Com ideias iniciais
Contraditória das atuais
E até mesmo das finais,
Entre essas contradições formulo condições
Catarses transformando-se em epifanias,
Em que pelas quantidades infinitas de canções
 Acrescenta-se com a sedução
Simples músicas fundem-se em poesias.
        .
   .  AA  .

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Eu parei de respirar em fevereiro...

Eu achava que, se eu chorasse o suficiente, iria conseguir colocar todas as minhas dores para fora, mas eu não conseguia, porque no fundo, talvez, eu acho que eu não queria. De tal pensamento fracassado surgiu meu segundo plano; me cortar para colocar as dores para fora.
Descobri nas facas, nos estiletes, nos dentes de pentes, nas tesouras, nas giletes, nos tic-tacs de cabelo, nas pinças ou em qualquer objeto com ponta uma heroína instantânea. Quando o sangue jorrava dos meus braços, a pele doía, e quando a pele doía, ela amenizava a dor que minha mente e meu coração estavam contemplando. Em um impulso compulsivo, eu transformava a dor emocional rapidamente em dor física — o que é muito mais fácil de agüentar. A dor física desaparecia e tudo ficava melhor. Era como se eu estivesse em transe, ­saindo do meu corpo e me olhando de fora, anestesiando toda a dor, voando livremente como uma borboleta feliz, usando o sangue da minha pele como remédio para minha cabeça. Pouco me importava ter futuras cicatrizes, essas eram fáceis de esconder. As feridas internas acabaram virando in­des­cri­tí­veis, impossível de agüentar, óbvias, estampadas em todos os meus menores movimentos. Cortar-me era um alívio de poucos minutos e algo mais para minha coleção de ilusões, mas funcionava. O sangue me dava espaço para respirar...

Trecho do livro : Fugalaça- Mayra dias gomes.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Caio Fernando Abreu

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.
Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.
Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.
Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector “Tentação” na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.
Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.
Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.
(Publicado no jornal “O Estado de S. Paulo”, 22/04/1986)

domingo, 3 de julho de 2011

POR QUE TENHO CIÚME?

Dois são os motivos por que estou contigo: porque te
amo e porque não tolero perder-te. Meu amor acabou e por
isso só resta o outro motivo. Não suporto imaginar-te em
outros braços, teu rosto relaxado depois de fazer amor, que
rias, que gozes do mesmo modo que o fazes comigo. Só de
pensar, estremeço. Missionário de uma causa medíocre –
cuidar para que ninguém se aproxime –, me pergunto se
além disso quero alguma coisa de ti. Por que motivo não
tolero perder-te? Será tão alto o teu valor? Ou tenho alguma
razão para converter-me no guardião oficial do teu corpo? A
resposta é simples – outro a teu lado me reduz a nada. Então
só te necessito para que teu ser garanta o meu e perder-te é,
de alguma forma, perder-me. Estranho pacto; por que o
firmei? Sinceramente não sei, como também ignoro quando
vai acabar. Finjo pelas aparências, pela pura elegância das
aparências, que posso prescindir de ti. E suficiente que
perceba algum brilho em teus olhos, olhando alguém com
aparente desinteresse, que imediatamente me surpreendo. O
pior é que sabes disso. Debochas de minha prisão. Gozas a
minha liberdade condicional. Sei que um dia serei livre; só
estou esperando que prometas e cumpras: nunca amarás
outro. Prometes?


Tirado do livro:  Freud explica de Alberto Goldin